segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Flávio Galindo - Crônica: Cair Para Voar


Eu sempre quis voar. Começar assim uma narrativa já mostra o quanto posso ser retardado em sua visão. Eu sempre quis voar, pena que minha única opção era cair. Sentindo somente a brisa do vento, me lembro de ter aberto os braços e fechado os olhos. Não lembro a altura. Não lembro como cheguei até ali. Doses e mais doses. Mais uma, garçom! Tomei-lhe a garrafa quando me disse que não me serviria mais. Filho da puta duma figa, eu tava pagando, então ainda deixei uma nota alta no balcão e cuspi no chão. Saí do bar em zigue-zague. É por cada motivo tonto que enchemos a cara para fugirmos dessa realidade cruel que mal vemos o quanto nós nos transformamos cruéis.

Sentei num rodapé de uma esquina qualquer. Não sei se era a quantidade exorbitante de álcool no sangue que subiu pra cabeça ou se era a luz do posto que não parava de piscar, mas fiquei tão nervoso a ponto de lançar minha garrafa mirando a luz do poste. Obvio que errei, mas quando a garrafa estourou em centenas de partículas cortantes, ouvi um gemido.

Fixei meus olhos em qualquer canto que pudesse ver algo diferente além da escuridão do local e a luz natalina do poste. Outro gemido e aquela voz rasgando o vento falou comigo. Um ar gélido de súbito me despertou e a luz parou de piscar se mantendo acesa. Estava muito bêbado e minha mente com certeza pregava uma peça desconfortante em mim, mas o que eu tinha a perder, afinal?

– Boa noite, homem devasto!

Era uma maneira um tanto quanto estranha de me chamar, admito. Vi roupas brancas dos pés a cabeça. Entrei no jogo daquele ser estranho.

– O diabo veste prada!

Ele sorriu e eu não sabia se tinha medo ou se sorria junto e o chamava pra beber, mas tinha quebrado minha garrafa. O vi em flashes caminhando até mim.

– Você está perdido, homem devoto?

– Devoto à cachaça e perdido na vida – completei.

– Vai se perder mais ainda, homem vasto.

– Não quero me encontrar!

– Besteira – ele se abaixou até ficar cara a cara comigo e continuou: – todos precisam se encontrar. Você está perdido. Isso se chamar amor?

– Você brinca com as palavras – respondi a ele em meio aos soluços. – Não deve saber o que é o amor!

– Aaaah, eu sei. E cooomo eu sei.

– O que aconteceu com seu rosto? – indaguei, enquanto minha visão ficava mais nítida e podia observar uma face com queimaduras, um sorriso torto e olhos fundos. Certamente o álcool estava me ferrando.

– O amor! – disse como se apreciava a palavra com repugna. – Contagiante, não? Ele mata mais do que qualquer doença existente. Qual a cura? Qual o diagnóstico? Conceito? Você consegue sentir, homem crédulo? Consegue sentir todo esse poder?

– Senti e já estive com ele!

– Ah e agora quer arrancar de você, mas como fazer? Beber? Ressaca? Ah, isso é um tédio. Podíamos beber e nunca ficar de ressaca. Seria ótimo. Faça o que realmente dará certo. Solte suas amarras. Qual seu maior sonho? Conte sua maior vontade e deixe-me ajudar.

– Ajuda? – eu o olhei e constei que se ele já estava em uma situação ruim, como podia me ajudar então? – A que custo? O que você quer de mim?

– Diga o que mais deseja. Abra os porões da sua mente.

Eu pulei. Não lembro a altura exata. O vento era mais gélido do que a voz, há minutos atrás. Tentava me agarrar a algo em vão. Abri meus olhos. Todos os momentos passaram como um turbilhão de informações ao mesmo tempo.

Sorrisos, festas, abraços, beijos, amassos, alegria, um choro. Um vela. Um pedido. Um amor. Uma história de duas pessoas destruída pelo tempo. Um parque. O sol. A chuva. A brincadeira. A sinceridade... o olhar, as palavras... o afeto... o eterno... um túnel. A luz se aproximando... me cegando.

Tapei os olhos. Aguardei. Os abri novamente. Orvalho. Primavera. A natureza. O mar. Ela. Um olhar pra mim. Desejei correr. Estendi o braço. Um sorriso. Um vestido branco ao relento. A paz. O recomeço. Consegui tocá-la. Sorri de volta.

Trim-trim! Algo me afastou. A vi mais longe. Mantinha o sorriso. Seus lábios declamaram três palavras. Trim-trim! Natureza. Verão. Sorrisos. Amor. Primavera. Corrida... trim-trim!

Olhos fechados. O vento no rosto. Eu ia alçar voo ou ainda continuava a cair? Não sabia ao certo!

– Meu desejo mais profundo é voar!

– Que seja concebido então, homem verdadeiro. Que o voo lhe traga o que almeja, após uma queda densa!


Uma cama. Um sorriso. Olhos fechados. Meus lábios declamavam as mesmas três palavras. O sol nascia. Em paz. Nos perdemos para nos encontrar. Nunca desista de procurar e se achar, segure livremente. O que é verdadeiro não é o eterno enquanto dura, é o eterno que você luta para que nunca morra! 


2 comentários:

  1. Uma crônica muito criativa devo dizer...
    Cair para voar... Gostei!

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  2. Gostei da maneira com que se referiu ao eterno, ao invés de dizer que seja eterno enquanto dure, disse que as coisas verdadeiras são eternas enquanto lutemos para que estas não morram. Demonstrando uma outra maneira de se pensar a eternidade, como algo que se vai construindo e mantendo.

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